O forno está aceso. O ar quente vibra dentro do pequeno ateliê da Fundição Guará, em Matinhos, um espaço colorido, repleto de ferramentas e de peças que remetem ao próprio Litoral do Paraná – caranguejos, árvores, conchas e formas abstratas que parecem nascidas do mar. O estalo do vidro que se parte rompe o silêncio, logo seguido pelo som ritmado das ferramentas e pelas vozes das mulheres concentradas na criação. Sobre a mesa, fragmentos de garrafas e janelas aguardam o momento de voltar ao forno. A cada fusão, uma nova peça e, de algum modo, uma nova história ganha vida.
Durante uma tarde de trabalho, a reportagem acompanhou o grupo. É um espaço simples, mas carregado de entusiasmo. Entre uma fornada e outra, as conversas transitam dos cuidados com os filhos às feiras de artesanato e a expectativa de vender mais no verão. No centro da cena, com o olhar atento e o avental marcado por fuligem, está Désirée Sessegolo, artista e designer curitibana que idealizou a Fundição Guará – um projeto socioambiental e cultural que une sustentabilidade, design e empreendedorismo feminino.
“A arte do vidro é muito desenvolvida no mundo todo, menos no Brasil”, diz ela, enquanto ajeita uma forma metálica na bancada. “Aqui o material é caro, importado. Pensei: por que não usar o vidro descartado, que está por toda parte, e ainda ajudar pessoas a gerar renda?”
Criada em 2023, a iniciativa utiliza resíduos recolhidos nas ruas – garrafas, janelas e restos de vidro comum – para criar peças de arte e objetos utilitários, transformando descarte em joias, pratos, esculturas e símbolos de resistência.
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De um sonho pessoal a um modelo de economia criativa
A Fundição Guará nasceu do desejo de Désirée de compartilhar no Litoral o conhecimento acumulado em mais de 15 anos de carreira e cerca de 60 exposições no Brasil e no exterior. A artista conta que o processo foi marcado por desafios – desde a busca por apoio para viabilizar o espaço e o transporte dos fornos de Curitiba para Matinhos, até a complexa adaptação da rede elétrica para comportar o ateliê. Obstáculos que, segundo ela, costumam desanimar quem tenta empreender com cultura no Brasil.
“Os fornos são grandes, exigem carga específica. Eu quase desisti”, conta Désirée. “Mas sabia que ia dar certo. O sonho era transformar aquele equipamento parado na minha casa em um projeto cultural e socioambiental”.
Hoje, as duas salas cedidas pela Prefeitura de Matinhos, na Arena Vicente Gurski, abrigam turmas regulares de vitrofusão – técnica que utiliza o calor para fundir o vidro em novas formas. A maioria das alunas são mulheres, com idades que vão de 18 a 70 anos. Elas aprendem a cortar, limpar e remodelar o material, transformando resíduos em peças de design e arte utilitária.
O projeto, que começou como uma oficina experimental, rapidamente se consolidou como uma iniciativa de economia criativa: alia cultura, geração de renda e sustentabilidade, agregando valor ao trabalho manual e fortalecendo o empreendedorismo feminino no Litoral. “Achei que era um nicho de mercado: unir o vidro de descarte e pessoas precisando aumentar a renda. Duas pontas que se atraíam como um ímã”, resume a idealizadora.
De acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Brasil conta hoje com 10,4 milhões de mulheres empreendedoras – um aumento de 42% em relação a 2012. No Paraná, 32,7% dos negócios são liderados por mulheres, e mais da metade delas são chefes de família. As empreendedoras também se destacam pelo nível de escolaridade: 72,4% têm ensino médio completo ou mais, e quase 29% possuem ensino superior. Mesmo assim, continuam recebendo, em média, 24% menos que os homens.
“O que fazemos aqui é uma forma de corrigir essa desigualdade na prática. A mulher aprende, cria, vende, se sustenta e descobre que é capaz”, pontua Désirée.
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O vidro como oportunidade
Segundo a Associação Brasileira de Distribuidores e Processadores de Vidros Planos (Abravidro), o vidro é um dos materiais mais sustentáveis do planeta: pode ser reciclado infinitas vezes sem perder qualidade. Apesar disso, o Brasil recicla apenas 25,8% do que produz, conforme dados da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema). O restante se acumula em aterros, lixões e, muitas vezes, acaba nas praias e manguezais.
Em Matinhos, o problema é visível. O vidro descartado em áreas costeiras representa risco ambiental e, ao mesmo tempo, uma oportunidade econômica. Ao ressignificar esse material, a Fundição Guará transforma o que seria lixo em fonte de renda.
Durante a visita, Désirée aponta uma pilha de garrafas e janelas que teriam o lixo como destino. “O vidro nunca se perde”, diz, enquanto toca uma peça ainda quente, recém-saída do forno. “Se quebrar, eu coloco de novo no forno e ele vira outra coisa. É um material de recomeços – como a gente”. Desde o início do projeto, mais de uma tonelada de vidro que seria descartado já foi reaproveitada, conta ela.
Mas o caminho não é fácil. A manutenção do forno é cara, o espaço é pequeno e o projeto depende de editais e doações para continuar. “Fazer cultura com impacto social é um desafio constante. Às vezes falta material, falta recurso. Mas nunca falta vontade”, resume Désirée.

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Do Litoral do Paraná para o mundo
Mesmo com as dificuldades, o grupo já ultrapassou fronteiras. Em setembro de 2024, a Fundição Guará participou do Festival de Arte em Vidro de Veneza, na Itália, com a instalação Cardume Caiçara, composta por 500 peixes criados a partir de vidro reciclado. A obra, elaborada coletivamente pelas mulheres do Litoral, inaugurou sua itinerância internacional levando ao público europeu o viés socioambiental da arte em vidro produzida no Brasil.
“Em Murano, ilha de Veneza onde aconteceu o festival, o vidro é de altíssima tecnologia. Nós levamos o vidro das ruas, feito por mulheres que ainda estavam aprendendo – e isso encantou o público. Nosso diferencial é o propósito”, conta Désirée Sessegolo.
Após deixar o mar Adriático, onde “nadou entre expoentes da arte contemporânea em vidro”, o Cardume Caiçara retornou ao Brasil e agora se prepara para circular por cidades do litoral paranaense. A instalação impacta pela beleza e simplicidade, potencializadas pela interatividade com o público: centenas de peixes suspensos produzem sons delicados ao balançar, criando uma experiência imersiva que convida à reflexão sobre o eu, o coletivo e o meio ambiente – especialmente o oceânico.
O reconhecimento também veio em forma de premiações e certificações. Em outubro de 2025, o projeto recebeu o Selo SESI ODS 2025, concedido em reconhecimento às atividades de impacto social e ambiental desenvolvidas pela Fundição Guará. Além disso, a Exposição Itinerante “Cardume Caiçara” foi reconhecida pela UNESCO como Ação Oficial da Década do Oceano, consolidando o projeto como uma referência em arte e sustentabilidade no Litoral do Paraná.
Desde a criação do projeto, o grupo já participou de mais de dez exposições, levando ao público a força simbólica e social da arte em vidro – uma arte que, nascida do descarte, tem encontrado no fogo e nas mãos femininas o caminho da reinvenção.

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As mulheres do vidro
A cada encontro, novas histórias se misturam ao calor do forno e à poeira das oficinas. A reportagem acompanhou o grupo por uma tarde. Entre moldes e conversas, percebe-se que o que as une é mais do que a arte: é o desejo de autonomia.
Maria Tereza Rivera Vaz dos Santos – Da pousada ao forno
Chilena radicada há 48 anos no Brasil, Maria Tereza é uma mulher de múltiplos talentos. Artesã, cozinheira e dona de pousada, ela foi uma das primeiras alunas do curso.
“O que me chamou atenção foi o aproveitamento do vidro, do que fica jogado na rua. A gente passa de carro, vê um vidro, já pega e traz. Coloca no forno e transforma em arte”, explica.

A rotina de Maria Tereza mistura o trabalho com empanadas chilenas, o atendimento na pousada e o artesanato que vende nas feiras e na Universidade Federal do Paraná, campus Matinhos. Ela também comercializa suas artes em vidro em todos esses espaços.
“Cada dia que você coloca algo no forno, imagina um resultado, mas sai diferente. É uma beleza nova a cada vez. Isso me motiva”.
Durante a pandemia, ela deixou Curitiba e recomeçou a vida no Litoral. “Vim para cá para mudar de vida. A Fundição foi parte disso. Criei, vendi, e até levei peças para o Chile. Foi o que me tirou da depressão. O artesanato é meu mundo. Se eu não precisasse trabalhar, viveria só criando”.
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Verônica Pieczkoski – Turismo, terapia e sustentabilidade

Técnica em enfermagem e condutora de turismo de aventura, Verônica chegou à Fundição Guará em busca de equilíbrio. “Eu venho por causa da terapia. Aqui eu esqueço das coisas que me estressam. Sou mãe, trabalho com turismo, e esse tempo é só meu”, diz.
Fundadora da Ecovibe Turismo, ela atua com mais de 200 mulheres em projetos voltados à sustentabilidade e autonomia. “Meu propósito é trabalhar com mulheres e crianças. A sustentabilidade do vidro se conecta com a da mata. É tudo o mesmo cuidado: com o planeta e com as pessoas”.
Hoje, Verônica sonha em ver a Fundição aberta a visitantes e turistas. “Quero levar turistas para ver o nosso trabalho e permitir que eles levem uma peça para casa. Cada vidro reaproveitado é uma lição sobre o que é possível transformar”.
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Maeve Iurck – O reuso como filosofia
Dona de um brechó há 13 anos, Maeve foi a primeira aluna da Fundição Guará. Ela descobriu o projeto por acaso, em uma apresentação pública, e nunca mais saiu.
“A transformação do vidro transforma a vida da gente. A gente se tornou uma grande família. Todo mundo tem problema, e aqui a gente conversa, desabafa, ri. É um lugar de cura”, diz.
Maeve acredita que sustentabilidade é uma forma de existir. “No brechó, tudo é reuso. Aqui, o vidro também é reuso. O planeta agradece quando a gente aprende a transformar”.

Nos últimos dois anos, ela enfrentou a doença do marido e encontrou na Fundição o apoio que precisava. “O que me manteve de pé foi estar aqui toda quinta-feira. Colocar a energia nas peças me salvou de tanta tristeza”, desabafa.
Suas criações já foram expostas na Itália e na sede da Prefeitura de Matinhos. “A arte em vidro é caríssima. E aqui a gente aprende de graça, com uma professora generosa que ensina com o coração. E, com isso, conseguimos mais uma fonte de renda”.
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Maria de Fátima Ferreira – Da terapia ao empreendedorismo

Terapeuta holística, professora de yoga e dona de pousada, Fátima encontrou na Fundição Guará uma extensão de seus princípios de vida. “O que eu busco em tudo que faço é a sustentabilidade – mental, física e espiritual. E o vidro vem somar a isso. Transformar lixo em luxo é algo único”, conta.
Na pousada que administra, vende suas próprias peças e explica aos hóspedes a origem de cada uma. “Gero renda e consciência ao mesmo tempo. As pessoas se encantam com a história do vidro e compram porque percebem o valor de reaproveitar”.
Fátima também trabalha com alimentação natural e acredita que o processo criativo é parte da cura. “A arte cura, assim como o cuidado com o corpo e a mente. A Fundição é uma terapia coletiva”.
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Angélica de Lima Pôncio – Entre o turismo e o fogo
Guia de turismo e empreendedora, Angélica conheceu a Fundição em 2023, quando ainda trabalhava em feiras no calçadão de Matinhos. “Quando soube que o vidro seria reaproveitado, quis participar. O Litoral não tinha destino certo para esse material, e agora ele vira arte e renda”.
Hoje, ela vê a iniciativa como aliada do turismo sustentável. “Quando levo turistas pela orla, falo que aquele vidro jogado pode se transformar em uma peça de arte. Isso muda a forma como as pessoas veem o nosso território. É geração de renda, educação e pertencimento”, destaca.

Ao falar sobre o significado da Fundição em sua vida, Angélica se emociona. “A Fundição é mais que um curso. É um espaço de encontro, de conversa e de paz. É onde a gente para de pensar nos problemas e começa a criar”.

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O desafio da continuidade
A Fundição Guará já transformou a realidade de mais de quarenta pessoas, mas ainda enfrenta obstáculos para ampliar suas atividades. A ausência de um espaço próprio, os altos custos de manutenção dos fornos e a falta de patrocínio são desafios permanentes. Atualmente, o projeto está em fase de captação de recursos pela Lei Rouanet e busca empresas dispostas a investir na continuidade dessa iniciativa socioambiental e cultural.
“Queremos ampliar as turmas, abrir uma loja permanente e transformar a Fundição em referência em economia criativa no Litoral. Mas ainda dependemos do voluntariado e do esforço coletivo”, explica Désirée.
Essas barreiras, no entanto, não diminuem a motivação – apenas evidenciam o quanto empreender com cultura no Brasil exige persistência. É dessa resistência que nasce a força da Fundição Guará, um espaço que é, ao mesmo tempo, escola, negócio e refúgio.

As mulheres que passam por ali aprendem uma técnica, mas saem com algo maior: a certeza de que podem reinventar-se. O projeto é um retrato fiel da economia criativa brasileira – um modelo em que o valor nasce da cultura, do trabalho colaborativo e da capacidade de transformar resíduos em oportunidades. É também um símbolo de um tipo de empreendedorismo que vai além do lucro: o empreendedorismo com propósito.
Mais que um ateliê, a Fundição é um laboratório de empatia e independência. Cada mulher que chega com receio sai com brilho nos olhos, uma peça pronta nas mãos e a sensação de que algo dentro dela também foi derretido e refeito.
“Na Fundição Guará, o vidro, as histórias e as mulheres compartilham o mesmo destino: renascer das cinzas – e brilhar ainda mais”, conclui Désirée Sessegolo.
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